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Marchando e cantando

Os hinos sempre estiveram presentes em momentos marcantes da história da humanidade, inclusive no contexto de grandes batalhas.

Os hinos sempre estiveram presentes em momentos marcantes da história da humanidade, inclusive no contexto de grandes batalhas
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Créditos da imagem: Fotolia

Quando fez sessenta anos de idade, o velho rei ainda se lembrava da manhã em que viu um grupo de cantores marchando à frente de pelotões de soldados que permaneciam surpreendentemente na retaguarda. Ele lembrou do silêncio interrompido pela voz alta dos cantores e sorriu sozinho ao lembrar que, enquanto eles entoavam cânticos de louvor, os três exércitos inimigos do outro lado da montanha começaram a lutar uns contra os outros numa estranha e encarniçada batalha que os destruiu por completo.

O velho rei prendeu o sorriso por um instante, olhou para os lados para assegurar-se de que ninguém o visse rindo feito um idoso senil, e então cantou os primeiros versos da música que ouvira naquela guerra em que nenhum dos seus soldados precisou entrar em combate: “Rendei graças ao Senhor, porque Ele é bom e a sua misericórdia dura para sempre”.

O dia em que a música foi uma arma de combate foi relatado em 2 Crônicas 20, capítulo da Bíblia que registra uma ordem divina para que o rei Josafá posicionasse seu exército atrás dos levitas cantores na batalha do deserto de Tecoa contra os exércitos moabitas, amonitas e meunitas.

Em se tratando de utilização de artefato musical na guerra, Israel era reincidente. A primeira vez havia sido séculos atrás, quando os levitas marcharam por sete dias consecutivos ao redor das muralhas de Jericó. Naquela ocasião, os levitas foram na retaguarda e iam tocando buzina de carneiro. É claro que os muros daquela cidade não eram tão mal feitos a ponto de caírem ao som de shofar e vozes. Na verdade, nem contrabaixos, guitarras e microfones no volume máximo teriam essa capacidade.

Não foi a primeira nem a última vez na história em que se cantou hinos antes de uma batalha, visto que a invocação musical parece elevar o moral dos combatentes. Antes de começar a perseguição campal aos fugitivos escoceses em 3 de setembro de 1650, Oliver Cromwell liderou o exército inglês no canto do Salmo 117: “Aleluia! Povos todos, louvai o Senhor, nações todas, dai-lhe glórias…”

Louvar a Deus após a vitória também foi um comportamento típico dos antigos batalhões europeus. Essa conduta religiosa e musical consta numa peça de William Shakespeare em que os britânicos entoam um cântico de gratidão a Deus: “Que ninguém se vanglorie ou tome o louvor que é de Deus somente”, diz o rei Henrique V. “Deus lutou por nós… que todos cantem Non Nobis e Te Deum”. Non nobis, não a nós, Senhor, mas a teu nome seja dada a glória.

Na manhã do dia 5 de setembro de 1757, 33 mil soldados prussianos foram para o campo de batalha cantando hinos luteranos. Após o combate em que venceram um exército austríaco com o dobro do tamanho, eles entoaram o cântico Num danket alle Gott em agradecimento a Deus, conforme descrição de Thomas Carlyle:

“Escuridão total; silêncio, rompido por um granadeiro prussiano que, com voz solene de tenor, entoa uma música sacra: um hino conhecido, do tipo familiar do Te Deum, a que 25 mil outras vozes, e todas as bandas regimentais, logo aderiram:

Agradeçam todos vós a Deus
Com coração, mãos e vozes
Que coisas maravilhosas fez
Em quem o mundo exulta”

No livro Canhões de Agosto, a historiadora Barbara Tuchman relata que esse mesmo hino foi cantado entusiasticamente por uma multidão de alemães em 1o de agosto de 1914, quando a Alemanha entrou na guerra.

Em algumas batalhas, o apoio divino era invocado pelos dois lados do conflito. Na Guerra Civil Americana, soldados do Norte (União) e do Sul (os confederados) cantavam as estrofes do hino “Lutai por Cristo”:

Lutai, lutai por Cristo
Soldados sois da cruz
Alçai seu estandarte
Bem alto deixai brilhar sua luz
[Stand up, stand up for Jesus]

Os hinos não podem vencer uma batalha, nem mesmo quando tocados em volume extremo. Mas, em momentos de dificuldades e conflitos, pode lhe fazer bem cantar um hino de sua preferência. Isso pode trazer-lhe à lembrança as antigas batalhas em que Deus preferiu mostrar a Josafá e ao povo que não era pela força ou pela violência que se ganhava um combate.

JOÊZER MENDONÇA, doutor em Musicologia (Unesp) com ênfase na relação entre teologia e música na história do adventismo, é professor na PUC-PR e autor do livro Música e Religião na Era do Pop

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